É possível responsabilidade civil sem dano? Explicação à luz da doutrina e com exemplo.

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Por: Notitiacriminis – Yvina Macêdo

Há quem defenda que, a partir da CF/88, a responsabilidade civil não teria função exclusivamente indenizatória, coexistindo assim dois tipos de responsabilidade: a responsabilidade com dano e sem dano.

Pergunta-se: para essa corrente, ainda minoritária, como se daria a responsabilidade sem dano?

Na doutrina contemporânea, o tema é tratado por Pablo Malheiros da Cunha Frota, em sua tese de doutorado defendida na UFPR. A ideia de responsabilidade sem dano implica defender a ruptura de um dos pilares mais arraigados da responsabilidade civil: o dano.

Isso porque, por mais que variem os diversos suportes fáticos de responsabilização, o elemento dano sempre lhes foi intrínseco, gerador da responsabilidade e do dever de indenizar. Ao indagar sobre a possibilidade de responsabilidade civil sem dano, Cristiano Chaves de Farias, Felipe Peixoto Braga Netto e Nelson Rosenvald afirmam que a resposta será negativa se pressuposto for, em termos de responsabilidade civil clássica, no sentido de reparar danos injustos, uma vez que a responsabilidade civil se resumiria a reparar e nada mais.

Não obstante, há quem defenda que a partir da CF/88, é possível a suficiência do dano-evento para configurar a responsabilidade civil. Em outros termos, a responsabilidade civil não teria função exclusivamente indenizatória. Assim, dois tipos de responsabilidade coexistiriam: a responsabilidade com dano e sem dano. Nesse contexto, tem se desenvolvido a ideia de responsabilidade sem dano para as hipóteses de dano ambiental futuro – danos às futuras gerações -, partindo da ideia de pena privada, que abarca as situações de reparação e de punição.

Desse modo, a tutela punitiva ou pedagógica de determinados interesses ou direitos estaria no âmbito da precaução e da prevenção, com a tutela reparatória incidindo nas demais hipóteses, independentemente da presença da culpa para configurar a ilicitude (Carvalho, 2008, p. 146). A responsabilidade sem dano atual e concreto no direito ambiental poderia ser encaixada nos casos em que o “ilícito estabeleceu um custo social em decorrência direta de sua transtemporalidade e de sua dimensão difusa”, ou seja, “sempre que houvesse a produção de um dano (art. 14, § 1°, Lei n.° 6.938/81) ou a produção de riscos ambientais intoleráveis (arts. 225 da CF e 187 da Lei n.° 10.406/2002).”

Diante disso, o dano ambiental futuro é uma “verdadeira fonte de obrigação civil, que resulta em tutela diversa da mera indenização ou reparação, atuando por meio de imposição de medidas preventivas (de caráter inibitório ou mesmo mandamental)”. Assim, a tutela preventiva e inibitória da causação do dano, por exemplo, geraria uma eficácia jurídica que seria propriamente de responsabilização.
Nesse passo, a responsabilidade sem dano se enquadra nos casos de ausência de dano concreto e atual, mas presente a alta potencialidade provável de ocorrência do dano derivado dos riscos intoleráveis de determinada atividade (ex.:Lei n.° 7.347/85, art. 30) (Carvalho, 2008, p. 150-151). Alguns tribunais têm acolhido a responsabilização pelo dano ambiental futuro.

Ressalte-se, porém, que essa corrente é minoritária. A grande maioria afirma que não há necessidade de se tratar o tema como responsabilidade sem danos, posto que a responsabilidade por danos é pressuposta, no sentido de ser anterior à concretização. No próprio direito ambiental é possível, nas hipóteses de multicausalidade e de pluralidade de responsáveis, atenuar o nexo causal e imputar responsabilidades, “bastando que a atividade do agente seja potencialmente degradante para sua implicação nas malhas da responsabilidade” (Morato Leite; Ayala, 2010, p. 184).

Desse modo, a tutela dessa potencialidade danosa inclui o risco abstrato, porque, a partir do século XX, majorou-se a falta de conhecimento científico adequado acerca do catálogo de riscos públicos e perceptíveis, a inviabilizar o cálculo profícuo da extensão desses riscos.

Essa evolução social, informacional e tecnológica influencia a teoria do risco, não mais aplicada exclusivamente para os danos atuais, concretos, previsíveis e prováveis, mas também para aqueles invisíveis e imprevisíveis ao conhecimento humano. O que há é a “probabilidade de o risco existir via verossimilhança e evidência ” (Morato Leite; Ayala, 2010, p. 114-115). Na seara do dano moral, cumpre destacar que o prof. Flávio Tartuce, analisando as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça, entende que a ampliação dos casos de dano moral, em que está presente um aborrecimento relevante, notadamente pela perda do tempo, inconcebíveis no passado, representa outro caminhar para a reflexão da responsabilidade civil sem dano.

É certo que com a transição da responsabilidade civil clássica liberal para a responsabilidade contemporânea, desaparece a vinculação ao ato ilícito como gerador da responsabilidade. Há responsabilidade civil decorrente de fatos jurídicos lato sensu ilícitos que não são volitivos, não caracterizando atos, bem como de fatos lícitos aos quais se atrela a responsabilização. No entanto, para a maioria, embora descolada do ato ilícito, a responsabilidade civil permaneceu vinculada à eficácia indenizativa.

Pontes de Miranda, por exemplo, já observava que outros efeitos podem decorrer do ilícito que não a indenização, dando origem a medidas como a legítima defesa da posse, a manutenção da posse e as ações cominatórias. Essas medidas não caracterizam responsabilidade civil, porque não tratam de indenização. Uma das críticas doutrinárias se assenta justamente no que foi observado por Pontes de Miranda. Isso porque, ao se admitir uma responsabilidade civil sem dano, todos esses efeitos distintos da reparação seriam remetidos à responsabilidade civil. Haveria uma expansão extraordinária e pouco controlável da responsabilidade civil, que teria de dar conta de toda uma série de consequências que hoje lhe são estranhas.

Nada obstante, em que pese a maioria posicionar-se pelo não reconhecimento da responsabilidade civil sem dano no nosso ordenamento jurídico, torna-se relevante o seu estudo com a evolução considerável da tutela inibitória, dos deveres de prevenção e precaução e da possibilidade de tais efeitos preventivos decorrerem não apenas do ilícito, mas também de fatos lícitos lato sensu.

Por: Notitiacriminis – Yvina Macêdo

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