1. Introdução
Em palestra ministrada na “New York University”, em 04/12/2015, sobre o papel das Cortes Constitucionais no mundo contemporâneo, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso asseverou que a Suprema Corte exerce três papéis essenciais: contramajoritário, representativo e iluminista.
As funções contramajoritária e representativa já eram de conhecimento da comunidade jurídica, sendo de certa forma inovadora a expressão “papel de vanguarda iluminista”.
O papel contramajoritário de uma Corte Constitucional significa a função de invalidação de leis e atos normativos, isto é, de atos oriundos da vontade das maiorias (órgãos Legislativo e Executivo).
O constitucionalista asseverou em sua palestra que “este é um papel legítimo dos tribunais, notadamente quando atuam, em nome da Constituição, para protegerem os direitos fundamentais e as regras do jogo democrático, mesmo contra a vontade das maiorias”, defendendo a distinção entre judicialização e ativismo judicial.
O papel representativo do Supremo Tribunal tem duas facetas: i) em decorrência da omissão inconstitucional do Legislativo, é chamado a integrar a ordem jurídica; ii) atender demandas sociais não satisfeitas tempestiva e adequadamente pelo Poder Legislativo. O enunciado n. 13 de Súmula Vinculante (proibição extraída dos princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade) e a greve dos servidores públicos são exemplos de função representativa do STF.
Para o indigitado ministro a execução de políticas públicas por meio de intervenção do Poder Judiciário está situada entre os papéis contramajoritário e representativo da Suprema Corte.
Segundo o constitucionalista Barroso o papel iluminista da Corte Constitucional é a função de, em nome de valores racionais, com parcimônia e autocontenção, promover certos avanços sociais e civilizatórios e impulsionar o desenvolvimento da história, superando-se discriminações e preconceitos prejudiciais ao Estado Democrático de Direito.
Como exemplo, no Brasil, temos o reconhecimento das uniões homoafetivas (relacionamento afetivo entre pessoas do mesmo sexo) como entidades familiares equiparadas às uniões estáveis convencionais (ADI 4.277 e ADPF 132); reconhecimento, em sede cautelar, do sistema prisional como “estado de coisas inconstitucional”, isto é, existência de quadro permanente e insuportável de violações a direitos fundamentais a exigir intervenção jurisdicional de ordem estrutural e orçamentária, como providências para instalação de audiências de custódia e descontingenciamento de recursos do Fundo Penitenciário (ADPF 347); utilização de banheiros por transexuais em consonância com sua identidade de gênero, e não pelo sexo biológico (RE-RG 845.779 em trâmite).
2. Desenvolvimento
O exercício dos referidos papéis iluminista e contramajoritário pelas Cortes Constitucionais é alvo de críticas, cujos objetivos deveriam ser perseguidos por outros órgãos e entidades vocacionados ao progresso moral e social, aos direitos humanos e cívicos, à difusão da cultura, da cidadania e do ordenamento jurídico à sociedade, buscando avanços sociais e civilizatórios e promovendo democraticamente o desenvolvimento da história, superando-se discriminações, preconceitos e violações insuportáveis a direitos fundamentais das pessoas humanas.
2.1. Dos papéis iluminista e contramajoritário da Defensoria Pública e do destinatário da Assistência Jurídica Integral e Gratuita prestada pelo Estado-Defensor
Afastando-se das Cortes Constitucionais e do próprio Órgão Judiciário, tais funções são incumbidas essencialmente ao Legislativo, ao Executivo, à Defensoria Pública, ao Ministério Público e a demais órgãos com finalidade temática na defesa de matérias diretamente ligadas ao iluminismo social.
Em destaque, e visando ao objetivo maior deste articulado, destaco a atuação da Instituição permanente Defensoria Pública, cuja autonomia deve ser pressuposto básico e indispensável para seu exercício fundante e vocacionado à defesa de temas críticos e sensíveis à coletividade e caros à sociedade, senão vejamos.
A Defensoria Pública é considerada “expressão e instrumento do regime democrático”, conforme nova redação do artigo 134, “caput”, da Constituição da República (CRFB), dada pela Emenda Constitucional (EC) n. 80/2014, constitucionalizando o art. 1.º da LC n. 80/94 (“LONDP” – Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública).
A Instituição Defensorial tem por vocação constitucional a defesa (acepção ampla de suas missões institucionais) dos “necessitados”, conceito jurídico indeterminado, sem limitação constitucional prévia, não adstrito à semântica econômica.
Os destinatários da Assistência Jurídica Integral e Gratuita (“AJIG”) prestada pelo Estado-Defensor são todas as pessoas necessitadas, as quais demonstrem “insuficiência de recursos” (art. 5.°, inc. LXXIV, CRFB), isto é, que estejam em situação de vulnerabilidade, seja de ordem permanente ou existencial, seja de caráter circunstancial ou momentâneo, consoante preceitua o artigo 4.°, inc. XI, da LONDP, cuja missão da Defensoria é, também, defender interesses individuais e coletivos de diversos grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado.
A exegese limitadora do destinatário do direito fundamental da “AJIG” prestada pelo Estado ao critério econômico-financeiro já foi superada, não cabendo à Defensoria Pública defender interesses tão somente de “pobres na forma da Lei” e de pessoas que sejam “beneficiárias” (titulares de direito subjetivo estatal: credoras/destinatárias) da gratuidade da justiça (art. 98 do CPC/2015 c/c Lei n. 1.060/50), confundindo-se conceitos jurídicos distintos de assistência judiciária gratuita, gratuidade judiciária ou da justiça e assistência jurídica gratuita (missão constitucional defensorial).
Se a Constituição brasileira (CRFB/88) instituiu como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (artigo 3.°, inc. III), previu a Defensoria Pública como Instituição Permanente (art. 134, “caput”, da CRFB c/c EC n. 45/2004 e 80/2014), interpretar a missão constitucional da Defensoria como exclusiva “defesa dos pobres” implica evidente contrariedade.
Ou a Constituição previu objetivo republicano de impossível cumprimento (“erradicar a pobreza”), falseando seu desiderato aos cidadãos e destinatários da norma, devendo ter antecipado o verbo núcleo “reduzir” para todo o inciso III do aludido dispositivo constitucional (“reduzir a pobreza e a marginalização…”), ou negou o caráter permanente da Defensoria Pública, eliminando-se sua existência constitucional e sua necessidade institucional após concluso o trabalho hercúleo de erradicação da pobreza e da marginalização, cuja missão também lhe fora dada de vários modos pela LC n. 80/94, a qual traça suas finalidades precípuas, interpretando-se adequadamente a Constituição do Brasil.
Em outros termos, significa dizer que a Defensoria Pública não é mero órgão de assistencialismo social, de assistência judiciária gratuita, de defesa dos pobres e hipermiseráveis (por exemplo, pessoas cadastradas no Cadastro Único do Governo Federal), configurando-se como Instituição permanente, expressão e instrumento do regime democrático, defensora dos direitos humanos, prestadora de assistência jurídica integral e gratuita, individual e coletiva, pelo Estado, visando à defesa plena, integral, libertadora e empoderadora dos necessitados, buscando-se acesso à Justiça (ordem jurídica justa e cidadania efetiva), difusão do ordenamento jurídico e da informação cultural (instituição “amiga do ordenamento jurídico”), como forma de prevenir litígios (busca da paz social e combate à cultura da litigância judicial ou social) e promovendo avanços sociais, civilizatórios, democráticos, superando-se “barreiras ideológicas”.
A atuação contramajoritária e a iluminista da Defensoria Pública significam defesa de minorias (não necessariamente quantitativa /numérica) e de grupos sociais vulneráveis merecedores de proteção especial do Estado, de pessoas, grupos e categorias excluídas ou estigmatizadas social, econômica, cultural ou politicamente, cuja missão tem como reflexo natural o desconhecimento (pré-conceito) e a resistência de poderes e órgãos públicos, entidades detentoras de poder econômico e político, senão também da própria sociedade, precisando de base e estruturação fundante (autonomia institucional) para exercício independente de seu mister.
2.2. Da autonomia institucional da Defensoria Pública como avanço constitucional, social e civilizatório
Uma Instituição com assento constitucional não pode atuar com temor de represálias ou risco de suicídio/homicídio institucional, sufocando-se sua atuação por meio de ataques a membros (independência funcional), retirada orçamentária (autonomia de proposição orçamentária) com atrofia estrutural e de expansão geográfica (art. 98, “caput” e § 1.° da ADCT) e temática (núcleos especializados nas temáticas humanista e iluminista, de enfrentamento à exclusão e invisibilidade sociais, à marginalização, discriminação e ao preconceito, como os núcleos de defesa da mulher, do idoso, da criança, adolescente e jovens, de pessoas com deficiência ou em situação de rua ou moradia irregular, de direitos humanos, da população carcerária, de combate à discriminação racial e de gênero etc.).
Incoerente e antidemocrático qualquer ataque político-jurídico à autonomia da Defensoria Pública (ADI 5.296/DF), prejudicando a defesa dos direitos fundamentais das pessoas sem dignidade humana (mínimo existencial) e direitos básicos de sobrevivência humana, além da construção de uma sociedade plural, inclusiva, democrática e libertadora.
A autonomia institucional-defensorial não é enfeite e deleite constitucional, mas garantia elementar de atuação efetiva e proativa, em defesa dos vulneráveis econômicos, jurídicos e organizacionais, cujo único escudo protetor é oriundo de Instituição autônoma e desvinculada de intervenções externas e políticas.
As EC n. 45/2004, 74/2013 e 80/2014 representam verdadeiro avanço social e democrático no Brasil, figurando o interesse de suposta inconstitucionalidade inequivocamente um retrocesso social, com receio de empoderamento da população invisível e marginalizada, cuja participação cidadã com maior grau de conhecimento incomoda interesses políticos escusos e contraproducentes, exigindo-se remodelagem na administração pública e na efetivação de políticas públicas comezinhas, mas ignoradas.
3. Conclusão
A autonomia de uma Função Essencial à Justiça (“FEJ”), como a Instituição Defensorial, não é meio de obtenção de regalias, de autoconcessão de benefícios, mas sim instrumento de sobrevivência institucional e de dignidade a milhares de pessoas dependentes de órgão estatal defensor das garantias básicas e da regularidade de serviços e políticas públicas, além de inclusão social e econômica.
A Defensoria Pública, além dos destinatários da norma constitucional da AJIG pelo Estado-Defensor (art. 5.°, inc. LXXIV, CRFB), precisa do fortalecimento de sua autonomia, de seu reconhecimento em termos estruturais, pessoais, reais e orçamentários, figurando a tentativa de sua eliminação ou enfraquecimento inequívoco ataque social, retrocesso incalculável às funções essenciais à justiça, ao Estado Democrático de Direito e ao bem-estar social.
Mormente numa época em que alguns Juízos destituem a Defensoria Pública dos autos de processo-crime para nomear advogado dativo na defesa criminal técnica de necessitado; afasta a legitimidade defensorial ativa na tutela de interesses difusos e coletivos; “nomeia Defensor Público” em lugar da intimação da Instituição Defensorial (arts. 134, § 4.º, da CRFB, c/c 3.° da LONDP) para exercício de atribuição legalmente prevista; em que o Executivo corta e reduz seu orçamento anual, ainda mesmo sem discussão das propostas no Legislativo (ADI 5.381/PR, ADI 5.286 e 5.287 e ADPF 339); contrata advogados para exercício da função defensorial típica (atuação no sistema carcerário; defesa técnica na audiência de apresentação de adolescentes representados por ato infracional; assistência jurídica municipal – “Defensoria Municipal”).